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UFT cria Câmara de Mediação, Conciliação de Conflitos, Enfrentamento ao Racismo e Assédio
Em uma medida histórica e inédita, a Universidade Federal do Tocantins (UFT) estabeleceu a Câmara de Mediação, Conciliação de Conflitos, Enfrentamento ao Racismo e Assédio. A criação foi oficializada pela Resolução nº 107/2024, aprovada pelo Conselho Universitário em 13 de março de 2024.
A criação da Câmara de Mediação, Conciliação de Conflitos, Enfrentamento ao Racismo e Assédio reflete o compromisso da UFT com a promoção de um ambiente universitário mais justo, inclusivo e seguro. A iniciativa busca não apenas resolver conflitos, mas também implementar medidas educativas e preventivas para conscientizar a comunidade acadêmica sobre a importância do enfrentamento ao racismo e ao assédio.
A pró-reitora de extensão da UFT, Maria Santana, lembra que a UFT já se destaca com a política de cotas para indígenas e quilombolas, no entanto, mesmo com essa “boa ação da Universidade” – que ela pede para deixar entre aspas a expressão - não impediu e não impede que a universidade continue sendo o lugar onde mais se tem racismo, no sentido mesmo dos bancos escolares, ou seja, o racismo está em todas as partes.
“O pior de tudo é o racismo estrutural, ou seja, é o racismo a partir da visão estruturante da instituição. É uma universidade ainda colonial. É uma universidade que não dialoga com os saberes e fazeres da comunidade que aqui está. Então esse é o principal racismo estrutural que a universidade tem. Fora isso, nós temos no dia a dia, o racismo nas nossas falas, nas nossas ações, enquanto pessoas. Então essa câmara é justamente um olhar diferenciado a partir do IERÊ e também da política de ações afirmativas que a Pró-reitoria de Extensão tem trabalhado na universidade, pensando que a universidade é um lugar de todos. Então se ela é um lugar de todas as pessoas, não tem por que não trabalharmos com a questão de raça, de gênero, etnia, dentro desse espaço”, pontuo a pró-reitora.
A Câmara
A Câmara tem como objetivo principal enfrentar o racismo institucional e o assédio, além de mediar conflitos no âmbito da UFT. A Resolução define a mediação e conciliação como atividades técnicas exercidas por um terceiro imparcial, escolhido ou aceito pelas partes envolvidas, que auxilia na identificação ou desenvolvimento de soluções consensuais para a controvérsia. As sessões seguirão os princípios de imparcialidade, isonomia, oralidade, informalidade, autonomia das partes, busca do consenso, confidencialidade e boa-fé.
Sua composição se dará por membros qualificados e treinados em práticas de mediação, com uma perspectiva voltada à promoção da igualdade racial e de gênero. A composição mínima é de três membros, assegurando diversidade em termos de raça, cor e gênero. O Reitor da UFT vai designar um Coordenador-Geral e os membros, responsáveis por realizar os procedimentos necessários para as sessões de mediação, conciliação e enfrentamento ao racismo e assédio. A Câmara terá um mandato inicial de dois anos, com possibilidade de reconduções sucessivas, e poderá atuar em todos os câmpus da UFT.
As principais atribuições da Câmara incluem a realização de ações de combate ao racismo e ao assédio, bem como a mediação de conflitos interpessoais entre servidores e estudantes da UFT. As denúncias serão encaminhadas à Ouvidoria da UFT, que decidirá sobre a abertura de processos disciplinares ou investigativos, celebração de Termos de Ajuste de Conduta ou encaminhamento para a Câmara de Mediação e Conciliação de Conflitos.
Caso não haja autocomposição nas sessões de mediação, os autos serão devolvidos à unidade correcional da UFT para prosseguir com o processo. Se a mediação resultar em acordo, um Termo Final de Mediação será lavrado e assinado pelas partes e mediadores, sendo posteriormente encaminhado para homologação. Este avanço marca um passo significativo na luta pela igualdade e respeito dentro da universidade, estabelecendo um novo padrão de governança e responsabilidade institucional.
Participação
O Núcleo de Pesquisa IERÊ (Igualdade Étnico-Racial e Educação) teve uma participação ativa na criação desta câmara, colaborando não apenas durante o processo de elaboração, mas também nas reuniões realizadas com o Reitor, os pró-reitores e o Ministério Público Federal.
Luís Gustavo Gonçalves Barreira, graduado em Direito pela UFT em 2023 e integrante do Núcleo de Pesquisa e Extensão Igualdade Étnico-Racial e Educação (IERÊ) desde 2021, compartilha sua visão sobre a implementação das novas políticas de enfrentamento ao racismo e ao assédio: "Para mim, essa implementação representa um marco significativo para nossa comunidade acadêmica, especialmente para nós, estudantes negros da UFT. Entendo essa política como extremamente necessária e alinhada com a ideia de um ambiente que garante mais justiça, inclusão e segurança para todos os alunos".
Ele ressalta que, como pessoa negra, o racismo o atinge em todos os âmbitos da estrutura, especialmente onde ele está presente. "Ainda há muito a ser feito para combater essas práticas, e essa política pode ser o primeiro passo para superarmos isso. Minha experiência no IERÊ, juntamente com o trabalho da professora Dra. Ana Lúcia, me fez perceber que eu tenho voz e que ela é relevante, mesmo fora da universidade. Toda essa movimentação me faz sentir ouvido. Acredito que essa política não apenas responde às necessidades imediatas das pessoas negras e das mulheres, mas também planta sementes para um futuro mais justo, inclusivo e participativo na nossa universidade", conclui Luís Gustavo.
Histórico
A professora Ana Lúcia Pereira, até recentemente docente do curso de Direito na UFT e coordenadora IERÊ, foi uma das articuladoras na criação da nova Clínica. Ela conta que IERÊ, que há mais de uma década acompanha os alunos cotistas e os alunos pretos e pardos em sua trajetória acadêmica, recebeu em 2023 uma denúncia de racismo, preconceito e discriminação contra um aluno do Câmpus de Porto Nacional. Com o apoio do Diretório Central dos Estudantes (DCE), uma audiência pública foi organizada para que os estudantes pudessem relatar suas experiências de racismo e discriminação na universidade. Esse evento contou com a presença de pró-reitores e suas equipes, além de representantes do Ministério Público Federal (MPF), com quem Ana Lúcia e sua equipe realizaram três reuniões preparatórias.
Após a audiência, duas propostas emergiram: a criação de uma Câmara de Enfrentamento ao Racismo na UFT, com o objetivo de julgar admissibilidade e promover a mediação de conflitos étnico-raciais, e uma política abrangente de enfrentamento ao racismo institucional. Ana Lúcia explica que a Câmara visa identificar corretamente atos de racismo, garantindo que não sejam ignorados ou conciliados inadequadamente, o que pode proteger os agressores e impedir a educação necessária sobre o tema. “A ideia é que cada caso apurado inclua um processo de letramento racial, prevenindo futuras ocorrências”, explicou ela.
Paralelamente, foi proposta uma política de enfrentamento ao racismo institucional, destinada à prevenção de ações racistas em toda a UFT. Esta política foi discutida em sessões do Conselho Superior da Universidade (Consune), que inclui dirigentes de todos os campi e os reitores. Ana Lúcia ressalta a importância de envolver todos os setores da universidade nesse processo, garantindo que a política seja implementada de forma uniforme e eficaz. A análise das duas minutas incluiu também a questão do assédio, refletindo a necessidade de abordar essa problemática de maneira integrada.
Na primeira reunião do Consune de 2024, as propostas foram aprovadas e a implementação já está em andamento. Comissões serão formadas em cada câmpus, compostas por representantes do IERÊ, pró-reitores e técnicos administrativos, para garantir que as novas políticas sejam aplicadas. Atualmente, Ana Lúcia Pereira é Diretora de Políticas e Programas de Educação Superior do Ministério da Educação (SESU/MEC), onde continua seu trabalho em prol da igualdade e inclusão.
Representatividade Estudantil
Maykon Costa Alves, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFT na época, relembra sua gestão com perplexidade diante da quantidade de relatos e queixas com contornos raciais evidentes que recebia, incluindo os provenientes de gestões anteriores. Determinado a agir, ele colaborou ativamente com o Núcleo de Pesquisa e Extensão Igualdade Étnico-Racial e Educação (IERÊ) e a professora Ana Lúcia Pereira para levar essas reclamações ao Ministério Público Federal (MPF). Sua participação foi crucial na mobilização para a audiência pública realizada em 26 de junho de 2023, um evento que ele considera um marco positivo na luta contra o racismo na universidade.
Para Maykon, as iniciativas são fundamentais para o desenvolvimento de uma universidade inclusiva e justa, especialmente em uma região como o Norte do Brasil, frequentemente esquecida e estigmatizada. Ele acredita que enfrentar o racismo em todas as suas dimensões é essencial. "O movimento estudantil permanece vigilante, denunciando todas as formas de discriminação, assédios e desmandos que comprometem a dignidade de estudantes, professores, técnicos e terceirizados desta universidade", declara. Essa vigilância contínua reforça o compromisso com um ambiente acadêmico mais seguro e igualitário para todos.