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    Além do interior: Como a UFT e um intercâmbio transformaram o caminho de José Miguel Nunes, formando em Direito
    MAIS QUE UMA HISTÓRIA…

    Além do interior: Como a UFT e um intercâmbio transformaram o caminho de José Miguel Nunes, formando em Direito

    Do interior de Minas, passando por uma escravidão contemporânea no Tocantins, José Miguel chegou à UFT em 2021 e trilhou uma jornada acadêmica que o levou até Harvard

    Por  Paulo Lourenço | Revisão: Daniela Camargos  | Publicado em 04/07/2025 - 15:01  | Atualizado em 04/07/2025 - 19:57
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    Para José Miguel, falar em Harvard foi um momento crucial, reafirmando sua identidade como pesquisador negro e validando a perspectiva latino-americana no cenário acadêmico global. (Foto: Arquivo Pessoal)

    Entre as muitas apresentações de Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) que presenciei, uma pergunta sempre me rondava: "Como o formando chegou a esse tema?". Alguns, de fato, aprofundavam-se na inspiração por trás de suas escolhas, enquanto outros se restringiam às justificativas obrigatórias da academia. Contudo, desta vez, tive a sorte de ouvir o nascimento de um assunto para um trabalho tão importante. "O Peso Colonial do Cuidado: Uma análise comparada do trabalho doméstico no Brasil e no Canadá" é o título da monografia de José Miguel Nunes da Silva, formando em Direito do Câmpus de Palmas.

    O trabalho de José foi desenvolvido sob a orientação da professora Júlia Pinto Komka (Direito/UFT) e coorientação da professora Jennifer Shaw, da Thompson Rivers University, instituição onde José realizou seu intercâmbio no Canadá. A pesquisa explora comparativamente o impacto dos diferentes tipos de colonização nas relações de trabalho doméstico em ambos os países. A escolha do tema, longe de ser aleatória, está profundamente enraizada na história de vida e na trajetória familiar do acadêmico.

    Do interior de Minas para o interior do Tocantins…

    Nascido em Abaeté, cidade do interior de Minas Gerais, José Miguel se mudou para o Tocantins aos 6 anos de idade com toda a sua família. Em Sandolândia, município a 315 km de Palmas, capital do estado, eles vivenciaram um contexto de escravidão contemporânea, morando dentro de uma carvoaria. Sem acesso a energia elétrica, água encanada e residindo em uma casa feita de madeira e palha construída por seu padrasto. Miguel diz que era muito difícil se desenvolver nesse contexto. "As condições de vida eram difíceis: não havia água encanada, e meu padrasto precisava furar cisternas para que tivéssemos acesso. A eletricidade também era inexistente. Lembro que, ao comprar carne, precisávamos salgá-la para conservá-la por mais tempo. Se queríamos água gelada, tínhamos que ir à casa do patrão, que ficava um pouco mais acima, e trazê-la em garrafas térmicas grandes, que mal se veem hoje em dia, para tentar manter a temperatura", disse ele.

    Depois de quatro anos morando lá, sua mãe conseguiu se mudar definitivamente para a cidade, onde passou a trabalhar como empregada doméstica. Quando ela ia trabalhar, acabava levando José para ajudar, após a aula. E, mesmo com o cuidado da mãe com os filhos e o trabalho, ele relata ter vivenciado situações desafiadoras na escola, relembrando uma em específico. José conta que, quando criança, mesmo tendo acesso à educação, enfrentou uma barreira racial. Ele gostava de ir à biblioteca da cidade, mas uma vez a bibliotecária o impediu de levar um livro para casa, alegando que ele o sujaria. Uma professora interveio, responsabilizando-se pelo livro caso fosse danificado, permitindo que José o levasse. Esse episódio ilustra como, apesar do acesso ao estudo, o contexto racial impôs obstáculos ao seu direito básico à educação.

    Aos 14 anos de idade, José conseguiu seu primeiro emprego na Agência de Defesa Agropecuária (Adapec) do município, local responsável pelo manejo pecuário da região. Após um ano, ele obteve outro trabalho como Assistente Administrativo em um mercado, cuidando da parte financeira e, pela primeira vez, tendo acesso a um computador. Mesmo sem saber manuseá-lo, inicialmente, ele acabou pegando o jeito e começou a utilizá-lo para os estudos do colégio. Com a pandemia, aproveitou o isolamento para estudar ainda mais para o Enem, prova que garantiu seu ingresso no curso de Direito.

    Ainda sem saber do resultado do Sistema de Seleção Unificada (SiSU), José veio para Palmas em 2021, em busca de seu sonho, mesmo com algumas vozes que tentaram desmotivá-lo. "Não tinha saído ainda o processo seletivo do Sisu, mas eu vim mesmo assim. Me falaram para fazer faculdade em uma universidade de rede na cidade vizinha, mas eu não quis. Minha nota tinha sido boa e queria me formar em uma pública", relembrou ele. Já impressionado com o tamanho da cidade, ficou ainda mais ao chegar na UFT: “Na universidade, presenciei a liberdade de expressão das pessoas, o que me proporcionou meu primeiro contato com discussões raciais. Pude, então, aprofundar minha compreensão sobre minha própria negritude e expressar minha sexualidade de forma mais autêntica.”

    Porém, essa não foi a única surpresa. Com a educação básica que teve em sua cidade, José se deparou na UFT com discussões e assuntos que ele nunca havia presenciado, o que, a princípio, tornou sua inserção um desafio. “Na UFT tive acesso ao ensino superior propriamente dito, o que foi um desafio inicial. Lembro-me de colegas e professores discutindo autores clássicos da sociologia, como Durkheim, Marx e Weber, nomes que, no ensino médio, eu havia estudado apenas superficialmente. As discussões que os meus colegas tinham eu não conseguia participar de forma alguma, porque eram muito profundas para mim, então até eu conseguir me situar foi bem difícil. Mas o que importa é que deu certo.”

    E deu tão certo que José Miguel foi parar no Canadá, selecionado para o programa Emerging Leaders in the Americas Program (ELAP), uma bolsa que o levou ao país e o destacou como um dos poucos escolhidos na América Latina.

    Do Brasil para o Canadá (ou mundo?)…

    O intercâmbio de José Miguel para o Canadá foi um marco importante e decisivo em sua trajetória acadêmica e pessoal. Selecionado para o programa Emerging Leaders in the Americas Program (ELAP), uma iniciativa do governo canadense que concede bolsas a estudantes de graduação e pós-graduação da América Latina, ele viu uma oportunidade de explorar novos horizontes. Em suas palavras, ele relata que sempre teve o "desejo, ainda no interior, de conhecer o mundo", e o ELAP se tornou a primeira porta para essa experiência. Chegar às universidades canadenses representou um choque cultural imenso para ele, mas também encontrou um ambiente propício para expandir seus conhecimentos e perspectivas, especialmente no que era relacionado à sua pesquisa sobre trabalho doméstico.

    Durante o período no Canadá, José Miguel não apenas aprofundou sua pesquisa, mas também vivenciou um intenso processo de “descolonização” do pensamento, uma busca pela emancipação do pensamento latino-americano na América Latina. Sua orientadora canadense, apesar das diferenças culturais e de experiência, foi fundamental nesse processo, sempre buscando descolonizar as discussões, dando-lhe espaço para expor suas ideias e pontos de vista enquanto um jovem latino-americano. Essa colaboração e a oportunidade de internacionalização resultaram em um TCC completo, que começou no Brasil, foi aprofundado no Canadá e finalizado em seu país de origem, ao lado de seus professores e colegas da UFT.

    E o reconhecimento por seu trabalho rapidamente chegou. José Miguel foi agraciado com o prêmio Pesquisadores da Brazil Conference, o que o levou a uma viagem para os Estados Unidos, com todas as despesas pagas. Ele visitou renomadas instituições como Harvard e o Massachusetts Institute of Technology (MIT), chegando a palestrar em ambas. Foi em Harvard que um encontro especial aconteceu: a primeira mulher trans brasileira a se formar na instituição, Dandara Amorim, ofereceu-lhe apoio e material caso ele quisesse aplicar para um mestrado nos EUA ou Canadá. Essa experiência foi, para ele, uma coroação de sua jornada, reafirmando-o como um pesquisador negro e reforçando a crença de que ele não chegou até ali sozinho, mas sim impulsionado por “pessoas me levando até lá, oportunidades que me levaram até lá”, disse.

    José Miguel espera que essa experiência não se encerre com ele, mas que se torne uma tradição em seu curso e na UFT, por considerá-la grandiosa e transformadora — algo que precisa ser vivenciado por muitos. “Essa experiência é única. Eu quero muito que essa prática continue, que não se perca no curso. Que todo ano alguém daqui vá. Às vezes a gente pensa: 'Ah, estou no Tocantins, longe dos grandes centros como São Paulo, Rio, Brasília, não vou conseguir'. Mas veja só, no passado, três pessoas da UFT foram para o Canadá pelo mesmo programa. Este ano, uma pessoa da UFT e outra do IFTO estão indo pelo mesmo programa. Então, a nossa Universidade tem um potencial gigantesco!”, exclamou ele. A vivência também foi essencial para o desenvolvimento de seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).

    Finalizando ou Começando uma jornada… 

    Na manhã desta sexta-feira, 4 de julho de 2025, José defendeu seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), às 9h30, no auditório do Bloco C, do Câmpus de Palmas. Ele, que não é mulher nem trabalhadora doméstica, mas é filho e neto de uma, vivenciou esse trabalho quando pequeno. Para ele, falar sobre o tema a partir da perspectiva de filho enriquece o trabalho, e ele dedica a monografia à sua mãe e avó, reconhecendo a importância delas em sua formação. José não nega a influência de sua família em seus interesses para a carreira futura; ao contrário, agradece por sua formação social e pelo apoio a novos horizontes. Mesmo com uma formação multimodal na UFT, diferente de muitos colegas que têm uma vocação mais tradicional para o Direito, ele sente que este é apenas o início de uma longa jornada e se diz ansioso pelo que vem por aí.

    “Olhando para o futuro, eu me sinto incrivelmente animado e grato por cada passo que dei. Minha vida tem sido muito pautada na busca pela autonomia e por oportunidades que me permitam ser diferente, e a UFT, com sua formação multimodal, abriu portas que eu jamais imaginaria no interior do Tocantins. Eu vejo que meus interesses hoje, construídos pela história da minha família, me levam por caminhos fora do tradicional, como o direito ligado ao feminismo, às questões raciais e, claro, à colonialidade. Não quero ser apenas um advogado nos moldes convencionais, acredito que a minha vocação é outra, e isso me empolga muito!”, finalizou ele.


    Tags:  Histórias,  Direito Palmas,  Palmas,  intercâmbio.  
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